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Tempo Suspenso


Quiosques, Traves, Parques e Troncos, de Rogério Faissal, confrontam o vazio. É uma situação bastante peculiar para os fotógrafos que, aparentemente, sempre registraram alguma coisa.  Faissal também apresenta os objetos que dão nome às séries. Mas eles estão sempre cercados pelo Nada, o que torna sua obra muito rica. E perturbadora.

Profissional consagrado na publicidade e no jornalismo, sabe como poucos compor imagens de forma sutil, em um teatro de luz e sombra que dirige há três décadas com um rigor construtivo cada vez mais elaborado. Suas fotografias operam nas regiões tênues entre os objetos de arte e objetos de desejo, reveladoras da liquidação dos limites entre a arte e o cotidiano. No mundo contemporâneo obscurecido pela superpopulação de imagens, a obra de Rogério Faissal destaca-se pela clareza formal e iluminação primorosa, na qual os elementos essenciais na realização de um quadro são preciosamente constituídos.

Nesse sentido, são séries que se aproximam de seus trabalhos anteriores, pelo apuro fotográfico na luz, cuidadosamente estipulada, e pelo foco e enquadramento precisos, desenvolvidos a partir de uma reflexão profunda sobre o que deve ou não se destacar. A primeira rapidamente tornou-se um trabalho que se aproxima da arqueologia urbana, ao registrar os quiosques das praias do Rio de Janeiro que estão sendo substituídos. A segunda reúne diversas tomadas de traves de futebol em campos de areia nas praias do Rio de Janeiro, afastadas de qualquer encantamento turístico provocado pela radiante paisagem carioca. Faissal repele o céu e o mar azuis e seus habitantes solares e cerca as imagens de simples madeiras brancas com absoluto negro. São tomadas noturnas que eliminam as distrações sensoriais da cor para dirigir o olhar do espectador ao que realmente importa. Operação semelhante realizada em Parques, fotografias de praças com brinquedos infantis – balanços, gangorras, trepa-trepas, escorregadores – envoltos no mesmo breu e com as cores da grama e da vegetação atenuados. Apenas o frágil e isolado colorido do metal dos brinquedos resiste à noite profunda. Em Troncos, toda a reminiscência humana é dissipada e árvores surgem fantasmagóricas, sem referências espaciais.

São fotos vazias de humanidade que aqui surge apenas como latência. A palavra tem ressonâncias profundas, desde suas origens etimológicas latinas – lateo, ou estar escondido – até a filosofia. Em seu livro Depois de 1945, o professor alemão de literatura comparada Hans Ulrich Gumbrich descreve e analisa o impacto da Segunda Guerra Mundial na população de seu país dominada por um persistente sentimento de exclusão e de irrealização que se estendeu além de suas fronteiras geográficas. O escritor utiliza para tanto o conceito de Stimmung que, de forma precipitada, poderia ser traduzida como “atmosfera”, “humor” ou “disposição”. Umbrich a utiliza como “latência”, no sentido de uma presença que não é revelada, mas é pressentida mesmo em sua não-aparição. “Numa situação de latência (...) sentimos que existe alguma coisa (ou alguém) que não conseguimos agarrar ou tocar (...) Mais importante: não temos razão – ao menos não temos uma razão sistemática – para acreditar que o que quer que tenha entrado num estado latente algum dia virá a revelar-se, ou não virá a ser esquecido.”[1]

Semelhante paralisia temporal ronda as imagens de Rogério Faissal, mergulhadas no mais profundo silêncio. Ferramentas da atividade humana, do lazer e do lúdico, campos de futebol e parques infantis permanecem eternamente à espera de seus usuários nesse tempo congelado que a fotografia revela. São assombrações, que se tornam ainda mais fortes nas árvores, cuja morfologia é alienígena de toda experiência cultural e, como fantasmas, aproximam-se insidiosamente do unheimlich freudiano.

Essa sensibilidade a algo subjacente que parece atenuado ou destruído revela as margens difusas entre tempos passados e presentes e, de forma ainda mais ampla e contundente, entre um mundo ocupado pela humanidade em contraposição ao Nada. As dificuldades em identificarmos os limites entre os escombros de uma modernidade parecem ter levado a uma era de indefinições e pluralidades culturais a que precariamente chamamos de pós. As vidências de Rogério Faissal sinalizam essa dificuldade em enxergar o que é presente mas que ainda não foi revelado.

 

Mauro Trindade

 

[1] GUMBRICH, Hans Ulrich. Depois de 1945 – Latência como origem do presente. São Paulo: Editora Unesp, p. 40.